A arbitragem no projeto de lei de contrato de seguro
O Projeto de Lei de Contrato de Seguro (PLC 29/2017) não desafia o uso da arbitragem nos contratos de seguro. Seguindo caminho diverso da recentíssima lei peruana de contrato de seguro, que proíbe expressamente o compromisso arbitral entre seguradoras e segurados antes de ocorrido o sinistro[1], o projeto brasileiro admite o compromisso arbitral desde o nascimento da relação contratual de seguro.
As duas únicas limitações são: (1) o direito aplicável aos contratos de seguro aqui celebrados será sempre o brasileiro e (2) a arbitragem se fará no Brasil. Com efeito, estabelece o artigo 66 do PLC: “A resolução de litígios por meios alternativos não será pactuada por adesão a cláusulas e condições predispostas, exigindo instrumento assinado pelas partes, e será feita no Brasil, submetida ao procedimento e às regras do direito brasileiro.”
Desse modo, a arbitragem não terá sido desviada para fugir da lei nacional de contrato de seguro, e os segurados e beneficiários não serão onerados com arbitragens no exterior. Essas duas exigências desagradam algumas resseguradoras internacionais que não quiseram se estabelecer localmente, assim como parece terem sido mal avaliadas por parte dos especialistas em arbitragem que pretendem que o seguro, contrato eminentemente nacional, fique na vala comum dos negócios internacionais.
O artigo 66 do PLC 29/2017 se justifica sob diversos ângulos.
O seguro é um contrato diferente dos contratos em geral. Embora conectado internacionalmente pelo resseguro, ele é um contrato para funcionamento no país, interno (garantia prestada localmente e indenizações pagas no Brasil). Esse contrato, aliás, vem recebendo tratamento nacional, por meio de leis especiais, mesmo nos países envolvidos com a tentativa de criação de um direito comunitário. Isso porque, como adverte Jorge S. Zappino, o seguro “constitui a mais moderna instituição destinada a procurar a conservação da riqueza das nações, mediante a proteção de seu patrimônio econômico e humano, tornando possível a reconstrução ou a reposição do potencial produtivo destruído ou danificado por fatos eventuais previsíveis; permite, em consequência, a manutenção dos níveis de produção, transporte, consumo, moradia, etc., da economia em seu conjunto”.
Além dessa tendência contemporânea à fixação de um direito positivo nacional sobre os contratos de seguro, todos sabem que as resseguradoras mais afetas ao comércio brasileiro vêm celebrando contratos e tratados de resseguro e retrocessão com seguradoras e resseguradoras brasileiras em que os compromissos arbitrais preveem a aplicação do direito brasileiro e a sede da arbitragem é no país.
Além disso, as apólices de seguro emitidas pelas nossas seguradoras têm apresentado cláusulas abusivas, mas eficazes no jogo do poder econômico, estabelecendo que o pagamento das indenizações devidas aos segurados e beneficiários dependerá do prévio recebimento dos aportes de resseguradoras quando estas tiverem sido contratadas no exterior. Se o direito positivo não limitar, paulatinamente o Brasil perderá soberania nesse contrato ao qual se aplicarão leis e costumes estrangeiros e que serão levados para discussão em todos os lugares, menos no próprio Brasil.
Isso também torna muito onerosa a defesa das pretensões contratuais. Os brasileiros seriam naturalmente obrigados a litigar no exterior. Como ensina a boa doutrina, a exemplo de Ruy Rosado de Aguiar e Judith Martins-Costa, mesmos os grandes seguros, contratados entre empresas de porte, são contratos de adesão. Os tribunais brasileiros têm essa compreensão e alguns julgados chegam a considerar até mesmo contratos de consumo grandes seguros celebrados entre empresas de grande porte.
Os seguros, não se pode ignorar, são contratos que também protegem interesses de uma infinidade de diversos terceiros cossegurados (fornecedores, investidores, credores etc.) e as vítimas dos acidentes quando o seguro envolver cobertura de responsabilidade civil, muito comum.
Litigar no exterior será, na maioria dos casos, um ônus desencorajador do exercício dos direitos. Por fim, o Brasil perderia a oportunidade de continuar desenvolvendo sua experiência jurídica na área de grandes riscos, propagando o que se poderia chamar de colonialismo securitário. Aliás, o parágrafo único do art. 66 do PLC complementa o quadro protetivo da formação de cultura jurídica nacional sobre seguro ao determinar que as decisões devem ser publicadas em repositórios públicos, obviamente sem quebrar a confidencialidade das arbitragens, isto é, sem revelar detalhes específicos (partes etc.). Isso afasta a tendência de que as arbitragens suprimam o desenvolvimento de precedentes orientadores e pacificadores das relações contratuais de seguro, tornando-as mais previsíveis.
É preciso atentar para o fato de que a criação de um continente dogmático contratual próprio e de jurisdições privadas constituem antigos sonhos dos setores securitário e ressecuritário internacional, como salientou o senador Humberto COSTA, ao justificar o PLS nº 477/2013, citando o famoso jurista austríaco Ernest RABEL, que presidiu o Instituto para o Direito Privado Estrangeiro e Internacional “Kaiser Wilhelm”, de Berlin: “A tentativa dos seguradores e resseguradores estrangeiros perseguirem independência dos direitos e das instituições judiciárias nacionais não é mera retórica. Isso já era constatado por importante doutrinador da primeira metade do século XX: O comércio mundial criou uma incrível rede de cláusulas, formulários contratuais e termos e condições negociais. Com a ajuda disso foi criado seu próprio sistema legal que mais ou menos o liberou das legislações nacionais e do direito internacional privado; o crescimento da judicatura por meio de arbitragem exerce sua influência e resolve as questões utilizando outros padrões que não aqueles utilizados nas Cortes públicas, quanto menos atenção se prestam a todas as provisões legais nacionais.”
Sérgio Bermudes, quando fala sobre o mito em que alguns procuram transformar o instituto da arbitragem, conta a história do gato no Egito. Os historiadores, antropólogos e teólogos procuraram investigar como o pequeno animal teria alçado a posição de divindade e, depois de muito esforço, não encontraram nenhuma pista. Concluíram então que foram os gatos que se autoproclamaram deuses e a coisa pegou. Se for para endeusar alguém, entre o seguro e a arbitragem, optemos pelo primeiro.
Essas são as razões bastantes para se prestigiarem as propostas normativas do art. 66 e seu parágrafo único, incorporando-as naquela que será a primeira Lei de Contrato de Seguro do Brasil.
Ernesto Tzirulnik – Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP-SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e coordenador da CEAAP/LCS/IBDS – Comissão de Elaboração e Acompanhamento dos Anteprojetos e Projetos de Lei de Contrato de Seguro 3.555/2004, 8.034/2010, 477/2013, PLS 8.290/2014 e PLC 29/2017.
Fonte: www.jota.info