O DPVAT precisa existir
Entrevista com Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro para a Revista CESVI
Uma montanha-russa. Essa é a imagem que define bem o que tem acontecido, de um ano para cá, com o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, mais conhecido como Seguro DPVAT.
Criado em 1974, esse seguro obrigatório tem o objetivo de proteger todos os brasileiros no caso de um acidente de trânsito – com indenizações para morte e invalidez. Mas, em novembro do ano passado, o governo federal anunciou uma Medida Provisória para extinguir esse seguro. A justificativa: fraudes no sistema e os custos de supervisão do seguro pelo setor público.
Quando parecia que a população não seria mais indenizada em acidentes graves, eis que há uma reviravolta no caso. Em dezembro, o Supremo Tribunal Federal decidiu suspender a medida. Os ministros do STF analisaram uma ação apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade que argumentava o seguinte: o seguro tem relevância na proteção social dos brasileiros, vítimas de acidentes de trânsito. E mais: acabar com o seguro prejudicaria o Sistema Único de Saúde (SUS), que recebe valores do DPVAT.
Para o advogado Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), a ideia de extinguir o seguro é absurda. O DPVAT, segundo ele, é ferramenta fundamental de indenização, principalmente às vítimas mais pobres, que não têm como despender recursos para brigar na Justiça quando não têm culpa pelo acidente. Um instrumento que tem sido mal usado – especialmente pelas destinações indevidas. Mas que, com os ajustes necessários, pode se firmar como o mais democrático dos seguros.
Mais que um pagamento obrigatório, um direito dos brasileiros.
Você já se manifestou publicamente defendendo o DPVAT. por que abrir mão desse seguro seria um erro?
O DPVAT nasceu com um conceito muito interessante, porque é um seguro de dano que não prescinde da apuração de responsabilidade para funcionar. E indenização de acidente de trânsito só é razoavelmente provida na sociedade quando você não tem de fazer a discussão diabólica da culpa – e estabelecer a prova dessa culpa.
Todo aquele que é acusado de alguma coisa tem de se defender. Em geral, principalmente em atropelamentos, aqueles que têm a sua responsabilidade convocada costumam possuir uma capacidade financeira maior que a da vítima. Então, se for brigar na Justiça para estabelecer responsabilidade antes de indenizar, você torna muito difícil a vida de alguém que acabou de sofrer um acidente. O DPVAT não faz isso. Seu conceito é de que se paga a indenização sempre que há o dano, independente das circunstâncias.
Por que ele tem sido tão contestado, então?
O problema é que todo seguro que não mexe muito no bolso do segurado, seja no momento do pagamento do prêmio, seja no momento que ocorre o sinistro, tende a virar um negócio
de ninguém. Ninguém vai prestar atenção nele. Aí se torna muito mais necessário existir a atenção e a seriedade das autoridades de supervisão e controle das operações. Alguém tem de cuidar disso que é difuso, mas do interesse da sociedade. E quem costuma tratar desses interesses gerais são as estruturas do Estado. Neste caso, temos aí a figura da Susep. Acontece que, como ninguém acompanhava o DPVAT muito de perto, também
ninguém se preocupou em defender o aumento do valor das indenizações (sem prejuízo da
manutenção do preço do seguro).
Um preço, aliás, que tinha sido completamente aceito socialmente. Eu nunca ouvi falar de alguém que tivesse se recusado a pagar o prêmio do Seguro DPVAT. É barato e está socialmente assentado como devido.
Lembrando o quanto é difícil impor uma contribuição à sociedade…
Exato! Quando se consegue algo assim, tudo o que você tem de fazer é proteger essa conquista. O que se espera do Estado é que trate disso como uma dádiva social.
A sociedade topa se solidarizar com o Seguro DPVAT para enfrentar os resultados dos acidentes. Que ótimo! Então tenho de atribuir seriedade, controle e gestão para fazer com que essas indenizações sejam socialmente úteis, realmente resolvam o problema da indenização a que fazem jus as vítimas para amenizar as consequências do acidente sofrido. Só que não foi isso que aconteceu com o DPVAT.
Explique qual foi o problema.
Esse seguro foi fraturado entre interesses de corretores, de entidades do mercado segurador… no começo, até de despachantes. E de repente se criou um sistema de saque do DPVAT. Todo mundo tirou um pedaço. Houve época em que até a Susep, sem nenhuma normal anterior, como se fosse um tributo sem lei, passou a retirar um bocado para suportar os custos da sua supervisão do próprio sistema DPVAT.
Como era um “seguro de ninguém”, ninguém se preocupou em acabar com as comissões, as destinações indevidas, e recalcular isso para atribuir indenizações verdadeiras às vítimas dos acidentes. No Brasil, você prefere morrer no ar ou na terra?
Não sei, acho que tanto faz.
Num avião seria melhor, porque sua família receberia uns 70 mil reais. Na terra, só 14 mil. E não temos apenas essa diferença entre o ar e a terra.
Existe também a diferença entre o Paraguai e o Brasil, entre a Bolívia e o Brasil, entre o Chile e o Brasil… O Brasil tem o valor de seguro obrigatório relacionado com o tráfego de veículos mais baixo da América Latina. A maior economia é a que pior indeniza suas vítimas de acidentes.
Por que isso acontece?
A única lógica é o fato de que os capitais recolhidos por esse seguro eram desviados para fazer pagamentos indevidos do interesse de corretores, seguradoras, advocacias, entidades
do próprio setor. E inclusive do Estado: ora pela Susep, ora pelo SUS. Só que esse seguro foi criado para resolver o problema das vítimas. Essas ficaram sem receber uma indenização que resolvesse seu problema. Essa grande rede de arrecadação acaba financiando escola nacional de seguros, prêmio de corretor de seguros, comissão de corretagem… sendo que, no caso do DPVAT, o corretor nunca vai intermediar nenhuma relação, não vai prestar nenhum serviço para o segurado.
E isso gerou uma resposta do governo…
Pois é. Tinha razão a superintendente da Susep, Solange Vieira, quando dizia que é um mecanismo ineficiente e que abria margem para corrupção. É verdade.
Ela então orientou a criação daquela medida provisória que extinguiria o DPVAT. A partir de 1o de janeiro de 2020, não haveria mais o seguro obrigatório. E a superintendente defendeu que não é justo você intervir na vida das pessoas e obrigar um proprietário de veículo a pagar um seguro sem que ele o queira.
Porém, ao ter a autonomia de decidir comprar seu automóvel ou explorar atividades relacionadas, a pessoa cria um risco, o risco de acidente de trânsito… que vai ter vítima. O problema do DPVAT realmente existe, mas a solução dada, em vez de pensar na coletividade solidarizada, pensava numa economia individual muito pequena. Nós não
temos, no Brasil, muitos instrumentos de solidarização social. O DPVAT é um deles. Então você tem de corrigir isso, e não extinguir. E o que fez o Estado brasileiro quando o Supremo não deixou extinguir, preocupado com o SUS? (Ninguém até agora preocupado com as vítimas de trânsito.) Diminuiu o valor do prêmio. Uma economia que as pessoas nem sabem que estão fazendo porque ela é pífia, irrisória, seja para quem recebe 1 milhão por mês, seja para quem recebe 600 reais de ajuda estatal. Quem leva o carro no lava-rápido uma vez por mês gasta mais do que com DPVAT.
Existe uma falta de sensibilidade social em quem não vê valor nesse tipo de indenização?
Sem dúvida. Se mexesse com o bolso de quem já tem uma vida confortável, haveria mais reação a favor do DPVAT. E não tem nada de errado nisso. O ideal é que as pessoas, quando têm os seus direitos ofendidos, elas reajam. Mas alguns direitos são fáceis de ser
identificados, e as vítimas da violação têm recursos para lutar. Agora, quando o interesse é de todos, mas não existe um comandante… e quem deveria comandar homologa o desfazimento do sistema, ou a baderna total do sistema, o uso por agentes privados… nós temos um problema grande.
Essa destinação sem critério é recente?
Não, e o problema já foi muito pior. Eu me recordo, nos anos 1980, quando chegava comissão de corretagem de DPVAT da ordem de 80% do valor do prêmio. Nos últimos tempos, pelo menos houve o fechamento de algumas torneiras. Eu sempre advoguei na área de seguros e durante muito tempo eu atendi seguradoras, mas me recusava a representá-las contra vítimas de acidentes de trânsito no ramo DPVAT, porque considero imoral.
Hoje o cuidado com o DPVAT está indo para um caminho melhor?
Acho que está na mesma situação, porque, apesar de algumas destinações indevidas
terem acabado, houve essa redução do valor do prêmio, e não houve reajuste na indenização em favor da vítima. Ela continua atropelada, morre ou fica inválida, e permanece com o problema de indenização pífia, enquanto o responsável pelo acidente
está pagando algo que, para ele, não faz diferença nenhuma. A única coisa que pode explicar esse abandono do seguro é o interesse naquele volume de reservas de provisões que foi formado. Como muitas vítimas não recebem as indenizações, fica juntando dinheiro no caixa.
Na sua avaliação, como o DPVAT precisava ser?
Em primeiro lugar, devia destinar 100% dos prêmios para a operação de seguro. Ou seja, para a formação de um fundo necessário à indenização substancial, verdadeira, real das vítimas. Pagar indenizações muito superiores às que são pagas atualmente. Eu não tenho dúvida de que o DPVAT poderia pagar 10, 20 vezes o valor atual das indenizações a todas as vítimas de trânsito e ainda manter o sistema saudável. Nós não temos que ver o Seguro
DPVAT como instrumento de financiamento de despesas públicas. Não é o seguro que tem de pagar educação, a educação tem de estar no orçamento da União. Não é o seguro que tem de pagar o SUS ou a saúde. Então acho que, eliminando os saques e destinando 100% dos valores arrecadados para a própria operação, você teria no Brasil o melhor seguro de enfrentamento das ocorrências de trânsito do mundo, com valor representativo e um conceito de cobertura magnífico. O seguro deve pagar indenizações. Se ele paga boas indenizações, ele se legitima.