Salvem o Seguro D&O!
Por GUSTAVO DE MEDEIROS MELO
Mestre e Doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia (ETAD) – [email protected].
Nos anos 30, por obra do multicentenário Lloyd’s, o mercado londrino desenvolveu um seguro voltado a proteger os interesses dos administradores de sociedades comerciais. As companhias passaram a contratar uma garantia de que o patrimônio pessoal de seus executivos não ficasse exposto aos riscos de sua atividade. A gestão empresarial, cada dia mais complexa, vinha lhes trazendo reflexos variados perante o Estado e terceiros em geral. Mais tarde, após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, com a criação de órgãos supervisores do mercado de valores mobiliários, os norte-americanos deram impulso ao que ficou conhecido como seguro D&O (Directors and Officers Liability Insurance).
O D&O garante o patrimônio do segurado em relação aos danos causados a terceiros, mas sua cobertura mais comum é o custeio das despesas necessárias à defesa do administrador nas instâncias administrativa, civil e criminal. Esses custos compreendem honorários advocatícios, periciais e custas necessárias à interposição de defesa e recurso nos processos administrativos e jurisdicionais (judiciais e arbitrais). O produto é contratado pela sociedade empresarial que adere ao seu clausulado, constituindo uma relação entre a pessoa física do segurado e a companhia seguradora.
Por outro lado, como ocorre com toda garantia securitária, o D&O não cobre danos decorrentes de atos dolosos, de natureza penal ou não. Aqui, o problema está em saber quem tem competência para declarar a existência do ato doloso praticado pelo segurado.
Até pouco tempo atrás as seguradoras costumavam redigir seus clausulados prevendo que não haveria cobertura em duas situações específicas: a) se houvesse confissão do segurado quanto à prática de ilícito doloso; ou b) se houvesse condenação dele por sentença judicial ou arbitral transitada em julgado. Fora dali, as apólices asseguravam o adiantamento dos custos de defesa, o que implicava a obrigação da seguradora de apurar as despesas incorridas e prestar a garantia, seja diretamente, seja mediante reembolso, respeitado o limite estipulado.
O D&O não existe para “isentar” ninguém de responsabilidade, nem para “validar” conduta criminosa ou “substituir” pena pecuniária. Ele pode servir para custear a defesa do administrador que vier a ser investigado ou processado por possíveis ilícitos cometidos durante sua gestão na companhia. No fundo, protege o patrimônio pessoal de quem precisa exercer seu direito fundamental à ampla defesa (CF, art. 5º, LV). É esse o legítimo interesse a que se refere o art. 757 do Código Civil. Ao final, se acaso ficar comprovado que o segurado atuou de forma dolosa ou fraudulenta, por decisão judicial ou arbitral definitiva, os valores recebidos por ele, a título de indenização ou custo de defesa, devem ser devolvidos à seguradora.
A função social desse seguro, entretanto, está ameaçada. O conteúdo das apólices já não é mais o mesmo. As seguradoras estão se auto investindo na prerrogativa de dizer se o segurado cometeu ou não crime, até mesmo no cenário precaríssimo da investigação policial. Se tiver havido denúncia do Ministério Público, o mercado está invocando agora uma espécie de “verossimilhança preponderante” da imputação como justificativa para negar a cobertura dos custos de defesa.
Inverteu-se a presunção. Determinada cláusula afirma que o segurado não terá adiantamento dos custos de defesa se houver qualquer reclamação relacionada com atos que atentem contra o patrimônio público e os princípios da administração pública, envolvendo possível prática de crime, improbidade administrativa etc. Somente caso ele venha a ser absolvido por decisão judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, a seguradora admite que poderá “reembolsá-lo”.
Ora, oferecer garantia de assistência jurídica, sobretudo em questões delicadas do processo penal econômico, com poder para se esquivar frente a qualquer “fumaça” de crime, equivale a dar com uma mão e tirar com a outra. Qualquer semelhança com a condição potestativa vedada pela lei federal brasileira não é mera coincidência. Tal prática sujeita a eficácia do contrato ao puro arbítrio de uma das partes, priva-o de todo o seu efeito jurídico e subtrai direito resultante da natureza do negócio (CC, art. 122 e 424; Dec.-lei nº 73/66, art. 13; CDC, art. 51, § 1º, II).
E como tem sido a postura do Estado diante disso? A mais dócil, infelizmente. Na cobertura de danos causados a terceiros, a Circular SUSEP nº 553/2017 prescreve que a indenização será prestada ao segurado, mediante reembolso, após sua condenação por decisão transitada em julgado (art. 5º). Todavia, a autarquia nada diz, tampouco nada faz, em relação à prática de fazer suposições unilaterais de “verossimilhança” na cobertura de custos de defesa, na contramão das garantias constitucionais da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII) e do juiz natural (CF, art. 5º, LIII).
Observe-se no detalhe: para indenizar o dano causado a terceiro, é necessário o trânsito em julgado da condenação do segurado. Porém, para negar a cobertura dos custos de defesa, o mercado segurador está de rédea solta para apontar suposta prática de crime pelo segurado, no momento que a seguradora quiser.
O Poder Judiciário não entendeu ainda o que está acontecendo. A pretexto de manifestar sua repulsa às práticas não republicanas combatidas na última década pela Operação Lava Jato, alguns julgadores extravasam no discurso para descarregar sua revolta naquele que não tem nada a ver com o crime: o seguro.
Em determinado julgamento do TJSP, a que a mídia deu destaque como espécie de “seguro-propina”, um voto chamou a atenção pela acidez de sua linguagem, ao dizer que o Judiciário não poderia ouvir o pleito do segurado, porque “não abre suas portas ao recolhedor de apostas em demanda contra o banqueiro do jogo do bicho, ou ao pequeno traficante em litígio contra o chefe do tráfico” (Apelação nº 1011986-32.2017.8.26.0100).
Alguns detalhes do caso tornam essa declaração ainda mais estarrecedora: (i) não era uma ação de cobrança de indenização de seguro, mas apenas um processo de instituição do compromisso arbitral; (ii) a apólice condicionava a exclusão de cobertura ao trânsito em julgado da decisão condenatória ou à confissão do acusado; (iii) a confissão apontada pela seguradora foi feita por um terceiro, e não pelo executivo cujos gastos se pretendia reembolsar; (iv) este executivo tinha sido absolvido por decisão definitiva da Justiça Penal.
Em outro julgamento, o TJSP se fiou nas alegações de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público para afirmar que “é óbvio que a exclusão se refere a reclamações baseadas em suposto favorecimento de terceiros, independentemente de sua confirmação no tramite da ação” (Apelação nº 1114679-02.2014.8.26.0100).
Os casos acima representam a onda que vem se formando no contencioso securitário. O seguro D&O caminha a passos largos no sentido de sua desnaturação e esvaziamento, de modo que o Poder Judiciário precisa encarar esse assunto com serenidade, racionalidade e espírito democrático. Salvem o D&O.